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Degenera UERJ

Degenera em primeira pessoa: O Coletivo Casa-Escola (por Geisa Ferreira)

O post de hoje foi escrito por Geisa Ferreria, pesquisadora do Degenera, e inaugura a sessão “Degenera em primeira pessoa”, em que pesquisadorxs do núcleo compartilham reflexões sobre suas práticas e trajetórias pessoais. Geisa é pedagoga, mãe do Vicente, e integrante do Coletivo Casa-Escola – as imagens que ilustram seu texto são do projeto. Aqui, ela nos conta um pouco dessa história. 

Fiz um exercício há pouco tempo que me ajudou a me conhecer um pouco mais, e também a entender como a escolha de ser educadora me atravessou durante toda vida. O exercício foi relembrar meu percurso escolar e perceber como a escola contribuiu para eu ser a pessoa que sou hoje. Comecei a pensar assim: quem eu sou, de onde vim e que o realmente desejo com a educação? Eu sou Geisa, mulher hetero, cis, negra, 41 anos, pedagoga, nascida no morro do Adeus no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde morei até os 27 anos. Filha de pais nordestinos, pobres, mestiços e batalhadores pelo pão de cada dia, a cada dia.

Desde muito cedo aprendi que tinha o direito de ser feliz, de ter uma profissão que me orgulhasse e de ter um filho na hora que quisesse e pudesse tê-lo. Minha mãe, muito humilde e forte, sempre nos reforçava que não estava criando a gente, eu e mais duas irmãs, para sermos “mulheres de malandro”. Desde muito cedo aprendi também que não tinha garantia de nada nessa vida. Minha condição de pobre me ensinou muita coisa e me fez frequentar a escola pública da primeira série até a graduação.

casa escola 4O espaço escolar me possibilitou muitas descobertas, muitos encontros e experiências, mas não me acolheu nas minhas crises e no meu autoconhecimento. Logo nos primeiros dias de aula, quando descia o morro e atravessava o bairro para ir para a escola, já fiz inúmeras descobertas. Descobri que havia ruas com asfalto e calçadas, descobri que as casas de dois andares abrigavam apenas uma família, descobri que as praças eram públicas e que lá eu podia me balançar junto com uma amiga da escola, cujos pais tinham carro. Percebi que o mundo ia além da minha família.

Quando saí dessa escola e fui estudar no Colégio Pedro II de São Cristóvão, passei por um momento muito difícil. Saí de uma escola pequena, com uma professora por turma, e fui para um colégio federal enorme, onde eu tinha 11 disciplinas, cada uma com um professor. Saía de casa com uma mochila cheia de cadernos, livros, material para aula de desenho e uniforme de educação física, entrava em ônibus lotados onde era encoxada, apertada e humilhada por homens adultos. Chegava no colégio e queria descobri-lo. Soube que na parte de trás do terreno tinha uma capela e um bosque, mas os alunos não poderiam ir até lá. Na hora do recreio me juntei ao grupo de meninos, pulamos a grade e fomos explorar o tal bosque. Claro que fomos pegos e nossos pais e mães foram chamados a comparecer no colégio para ouvir um sermão da coordenadora. Ui. Morri de vergonha. Vergonha por tirar minha mãe da sua lida diária de costurar e lavar roupa pra fora para ir até o colégio dar conta da sua filha bagunceira. Sofri muito com isso. Naquele dia, prometi que nunca mais “sairia do padrão” para não incomodar meus pais. Ou seja, já estava iniciado o processo de destruição do meu eu, a desvalorização dos meus desejos reais e inúmeras opressões pelos quais a escola seria responsável.

Nesse lugar, também descobri que eu era negra e pobre. Negra porque meu cabelo não era “comportado”, liso e comprido. Pobre porque, em uma ida a casa de amigos para fazer trabalho de grupo, observei que a cozinha onde almoçávamos era maior do que a sala e a cozinha da minha casa, e que, apesar de morarmos no morro, a casa também não era nossa porque pagávamos aluguel…

casa escola 11O que me salvou nesse período foram os amigos que eu fiz lá. Esse colégio, por ter pessoas da cidade toda, possibilitou que eu tivesse contato cotidianamente com diferentes contextos e histórias. Mas as avaliações, a maioria dos professores autoritários, o sistema de notas, a exposição da minha pobreza e a condução militarista contribuíram muito para eu não acreditar naquilo tudo. Não me sentia empoderada, desenvolvendo meu conhecimento ou aprendendo a viver integrada com todas as esferas da minha vida.

Depois fui para a universidade, onde aprendi sobre currículos, didática e história da educação. Não aprendi nada sobre pessoas, desejos, medos, dificuldades, alegrias, força, leitura de mundo, corpo, música, literatura, vida. Comecei a transitar na Zona Sul [regiã rica da idade do Rio de Janeiro], a trabalhar por lá e me descobri vivendo o racismo e o machismo a cada dia. Mas, apesar de todas essas descobertas, só me afirmei negra, mulher e educadora muito tempo depois da escola. Porque a escola, com sua estrutura rígida e compartimentação dos saberes, não me preparou para nenhuma dessas transições.

Trabalhei em uma ONG onde pude desenvolver e acompanhar projetos relacionados a educação, especificamente com as escolas públicas do Rio de Janeiro e da Bahia. Nas formações de professores de que participei, observei muito preconceito, dificuldade de aceitação das diferenças, de entender que a escola é um espaço laico. Percebi também a culpabilização dos adolescentes por todos os problemas que os envolviam, desde as notas baixas até a gravidez não planejada. Foram raros os trabalhos originais que utilizavam a experiência do aluno como recurso e nunca acompanhei nenhum onde se questionassem as normas e o formato da escola. O que era questionado era sempre o desempenho do aluno, e não o modelo massificador escolar. Nesse caminho, também conheci professores incríveis, diretoras engajadas, alunos participativos e críticos, técnicos envolvidos e teorias interessantes.

casa escola 7Durante esse trabalho e busca por formas alternativas de educação, procurei um curso técnico de dança, pois queria valorizar o corpo que a escola desconsiderou durante toda a minha vida. Fiz uma pós sobre Corpo, Diferença e Educação da Faculdade Angel Vianna. Nessa pós, aprendi muitas coisas sobre como pensar um jeito diferente de estar na escola, um jeito de cuidar de crianças que valorizasse o que elas são, e não o que elas podem vir a ser.

Durante a pós, engravidei. Eu queria ter o meu filho via parto normal, e sofri muito até achar um médico que topasse fazê-lo. Durante o pré-natal, me descobri vivendo a opressão machista e a supressão do meu saber em relação ao saber médico a cada consulta que eu ia. Foi um período muito difícil porque eu estava muito feliz e segura quanto às minhas escolhas, mas ao mesmo tempo era desqualificada e desacreditada pelo saber médico. Com 39 semanas de gravidez, o médico queria agendar uma cesárea sem a menor necessidade. Saí do consultório sabendo que jamais nos veríamos novamente. Consegui ser atendida na 40ª semana por um médico que me ouviu e que considerou minha experiência na dança, meu conhecimento do meu próprio corpo e minha história. Depois de 5 dias, nascia Vicente, de parto natural, fruto de um processo construído por mim e acompanhado pelo meu companheiro e o médico.  Experimentei um aprendizado lindo e um momento de beleza rara. Fui respeitada.

O parto me colocou em um lugar de muita força e coragem. Vi que podia enfrentar a rigidez do sistema médico se tivesse uma rede de apoio de amigos e familiares que acreditavam no que eu estava sentindo e vivendo.

caa escola 8Enquanto isso, mais 3 mulheres no curso da pós também estavam grávidas. Ficamos muito amigas e trocamos muitas dúvidas, medos e dicas. Depois que todos os bebês nasceram, compartilhamos vários momentos e sonhávamos sempre com uma possibilidade diferente de educação. Até que um dia uma delas colocou a pergunta na roda: “O que vamos fazer a partir do ano que vem? Não podemos matricular nossos filhos nesses espaços que criticamos tanto. Precisamos fazer alguma coisa.” Precisamos fazer alguma coisa… Precisamos fazer alguma coisa!!! Essa frase ficou ecoando em nossas cabeças e começamos a nos encontrar e pensar sobre isso. Nasceu então o projeto: Casa Escola – Projeto de Educação.

A busca de uma escola era uma necessidade dos pais e mães frente à gestão do tempo, à exigência de  produtividade, e à vida de casal, com a ideia de que as crianças devem se socializar em um espaço diferente da família para fazer novos relacionamentos e aprender a lidar com conflitos. Mas como conciliar uma proposta de educação que esteja centrada no desenvolvimento integrado com um valor que conseguíssemos pagar?

Não achamos nenhum lugar que contemplasse essas características. Com essa demanda e desejo de fazer alguma coisa que tivesse significado para nós, começamos a nos reunir em um grupo de estudos. Os encontros eram espaço de diálogo, experimentação e brincadeira. Trabalhamos em meio ao barulho, tentando cuidar das crianças, deixando que elas brincassem e, ao mesmo tempo, dialogando sobre as implicações da nossa escolha.

casa escola 1Nessa formulação, fomos inspirados por José PachecoAna Thomaz e pela Pedagogia Waldorf. Três práticas distintas mas que têm como ponto convergente o respeito ao desenvolvimento integral da criança, um ser que é. Algumas perguntas nortearam nossos estudos: como ser ao mesmo tempo pais e educadores? O que muda no cotidiano da família que vai emprestar sua casa para fazer a escolinha? Como lidar com o conflito entre crianças quando os cuidadores/educadores são os próprios pais? Como um espaço doméstico vira espaço pedagógico, e como um espaço pedagógico pode ser um espaço doméstico? Quanto custa e quais são os materiais básicos para montar uma escolinha?

Após esse período de construção de um pensar pedagógico coletivo, iniciamos pequenas mudanças em nossa casa, que foi a escolhida para sediar esse sonho. Construímos uma escola propiciando um espaço no qual todos participamos como educadores e educandos, onde podemos fazer virar realidade uma visão de mundo segundo a qual é possível misturar criativamente educação e cuidado. Trata-se de sincronizar tempos vitais e de aprendizagem, por meio da construção de um espaço de criação, brincadeira, vivencia e pesquisa.

Para realizar esse sonho entendemos: que esse processo pressupõe a existência de perguntas para alimentar a curiosidade e consolidar a autonomia; que o exercício da liberdade é possível através do encontro com o outro; que a “alfabetização social” se dá quando o valor do saber de cada pessoa envolvida com o processo e reconhecido como educação; que queremos fazer parte das perguntas, dos questionamentos e dos sonhos de cada criança; e que queremos criar um vínculo amoroso com todos os envolvidos e com os espaços que serão ocupados.

casa escola 9Em termos práticos, fizemos um planejamento com orçamento, seleção e procura de materiais, construção e adequação de espaços físicos, e a distribuição de responsabilidades e tempos. A ideia principal é que todos os pais e mães coloquem seu tempo, esforço físico e intelectual no cuidado diário das crianças. Acreditamos que é importante criar um ambiente que propicie um reconhecimento da responsabilidade pelos cuidados infantis para ambos os sexos e não apenas como uma característica e/ou obrigação feminina.

Nossa rotina tem como objetivo promover a concentração nas atividades, no grupo e no espaço, através de um programa semanal com atividades externas, internas e fixas. Essa concentração também é consolidada com um espaço organizado e com poucos estímulos, pois reconhecemos que o espaço da casa, da família e da cidade de maneira geral, já cria um ambiente de superestimulação, contribuindo para a pouca escuta interna e percepção de si e do outro.

As atividades são pensadas para desocupar a criança, ou seja, para que elas não tenham obrigações. A proposta é fazer a transição entre as atividades de acordo com o interesse de cada uma, respeitando seus desejos e necessidades, e não impondo um ritmo ou um tempo restrito, exceto para atividades que dependam de área externa ou impliquem o envolvimento de outras pessoas.

casa escola 12A avaliação tem sempre o foco nos objetivos do projeto, para que possamos replanejar e repensar a nossa inserção nesse processo. As crianças são acompanhadas diariamente e não há um modelo de competências ou habilidades para ser alcançado. Pelo contrário, focamos na descrição de rotinas e interações entre pessoas (adultos e crianças), materiais e espaços (físicos e simbólicos) usando técnicas simples de etnografia e pesquisa qualitativa.

Nossas atividades são diárias, de 13h às 19h, e as atividades externas (idas a centros culturais, parques, jardins, pracinhas etc.) acontecem pelo menos duas vezes por semana. Fazemos muitas atividades manuais com tintas, lápis de cera, aquarelas, papéis grandes, sementes, folhas, argila, elásticos, músicas e histórias pautadas na repetição. Privilegiamos o acesso a livros preferencialmente de gravuras ou com poucas palavras e/ou números, muitos banhos de piscinas, mangueira e baldes durante o verão e o uso de matérias naturais, artesanais e reciclados em detrimento do uso de eletrônicos. Exercitamos o envolvimento com atividades de asseio e limpeza do espaço, além da relação com o alimento através do lanche coletivo. Fazemos reuniões quinzenais, para validar cada etapa do projeto e entender as questões suscitadas no dia a dia.

Várias demandas e questões novas apareceram desde o início de nossas atividades, em fevereiro de 2014. Estamos atentos a elas e procurando nos alimentar em novos encontros, cursos, vivências e, especialmente, nas conversas com o grupo.

Com essa experiência, sinto que tudo que estudo e questiono posso colocar em prática, posso vivenciar efetivamente. Uma das coisas que me deixa mais feliz é participar de um processo educativo onde a criança não é oprimida, e onde os homens/pais têm a mesma importância e responsabilidade nas tarefas cotidianas. Beleza pura.
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